quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ele, o parto

Relato de parto - parte 1




De tanto ouvir Anunciação na barriga, Davi veio ao mundo em uma manhã de domingo.

Os sinais começaram tão cedo quanto a ansiedade. Dez dias antes, fui pra Santa Casa de Cabreúva com cólicas pra ser avaliada. Eram quaaaaase 2cm de dilatação, nem perto da brincadeira começar - e fui embora frustrada. No dia seguinte a frustração deu lugar a uma paz pela informação: ainda não era hora, mas tá chegando. Ok. Respira e não pira. Fui viver a vida, já de olho na data provável de parto - 24 de dezembro. Nesse dia, as contrações e cólicas vinham com um certo ritmo e fiquei empolgada achando que era dia - mas não era. 

Conversei com uma amiga enfermeira obstetra (@sementematerna) e ela me orientou a passar um longo tempo no chuveiro e observar se as contrações aumentavam ou diminuíam. Fui, feliz da vida, mas o banho quente fez as dores passarem, assim como meus motivos pra procurar a maternidade. "Amanhã, quem sabe", pensei e fui dormir. Dia 25 nada, 26 nada. 

Vinte e seis foi um sábado normal: fizemos faxina, almoço, dancei, dei risada, vimos série na Netflix até tarde. Em um dos episódios, passado da meia noite, comecei a marcar o tempo das dores, sem alarde. Não queria me empolgar de novo pra elas passarem e não ser hora ainda, mas dentro de mim algo dizia que era...

Meia noite e meia e desisti de ver série, as dores vinham com intervalos de 3 minutos - ótimo sinal! Falei pro meu marido (@gui_leo_davi) que se continuasse assim por mais meia hora, totalizando uma hora cravada, iríamos pra maternidade pra eu poder ser avaliada. 

Essa foto na varanda foi mais ou menos nessa hora. Aguentei até uma e meia, tomei um banho e falei: "e aí tá preparado pra ter um neném?!", mas acho que na verdade e estava perguntando pra mim, mesmo. 

Chegamos na Santa Casa por volta das 2h mas estava apenas com 2cm de dilatação, o que quase me matou de frustração. Como assim, nem um cm de dilatação a mais??? Que saco! Mesmo assim, fiquei em observação: fiz cardiotocografia, tomei Buscopan e nada da dor ir embora. A enfermeira obstetra @adriana_piinheiiro me orientou a ficar um bom tempo na bola de Pilates no chuveiro. Fui pro Quarto Semente com o coração cheio (em outro relato especifico tudo o que esse quarto - esse projeto - representa pra mim). 

Sob a água quente e com a companhia indispensável do meu marido, vi as dores aumentarem. A cada "onda" elas vinham mais intensas. Eu já não estava marcando o tempo, só sabia que doía. E com o tempo, fui perdendo a pose e as posições. Doía sentada, eu me levantava. Doía de pé, sentava de novo. Água nas costas, água na barriga, mãos agarradas nas barras na parede. Lembrava com uma constância incrível de uma das entrevistadas do documentário A Dor do Parto. Ela dizia que quando tinha contrações, fechava os olhos e contava: um, dois, três... até passar. Eu lembrava dessa moça e tentava contar, mas me perdia em todas as contagens. Deixei pra lá e continuei meu mantra de ais e uis, tentando respirar o máximo possível.

Num certo ponto, tudo o que eu queria era deitar um pouco, minha lombar doía bastante. Perguntei a hora pro Guilherme, ele respondeu que eram quatro e quinze. Fiquei em choque. Como assim já faz duas horas que estou aqui? Pedi pra que ele chamasse a enfermeira, pra perguntar se eu podia me deitar. As 4h30 ela me reavaliou e fui internada com 5 cm de dilatação. Uma evolução e tanto pra uma primigesta, até eu sabia disso. Um misto de alegria e medo, coberto de uma dose de realidade de que agora era hora e não dava pra voltar atrás.

Nessa hora, passei mal. Não conseguia mais falar e, quando tentei, vomitei por todo o banheiro todas as ânsias que não tive durante a gravidez. Não foi uma cena bonita. Mesmo sabendo que o parto é um evento cheio de secreções, a gente - no fundo - quer que seja tudo limpinho. Da vergonha. Da medo. Dói. Suja. Mas é assim. 

Daí pra frente, fiz caminhada no Solário, sob a luz da lua e a brisa de verão. Cada contração que me parava, me punha caretas na cara, me fazia pensar que estava perto. Aquele momento tão esperado, desde antes de engravidar. A hora de parir, de por no mundo. Que medo. 

Não sei que horas eram, mas atingi a dilatação total. "A partir de agora pode fazer força, quando sentir vontade" - me disseram. "Não quero", pensei. "Quero, mas não quero. Vai doer. Vai rasgar. Vou me machucar, não quero" - eram pensamentos recorrentes. Eu sabia que a hora da covardia chegava. Já presenciei ela chegando pra duas mulheres cujos partos eu assisti e li relatos demais pra achar que comigo seria diferente. Senti medo durante todo o trabalho de parto. Pensei na palavra cesárea o tempo todo. Mesmo assim, havia uma voz na minha cabeça - a minha voz - pedindo calma e me dizendo que eu sabia que tudo isso ia acontecer, que eu sabia como tudo isso ia acontecer e que eu havia feito a minha escolha com consciência e clareza. "Calma, respira, que vai dar tudo certo."

Cada método não farmacológico de alívio da dor foi me salvando de desistir (não que fosse uma opção real, mas na minha cabeça até que era). Banqueta, rebozo, banheira. Lembro também de mãos fazendo massagens com um óleo que esquentava, bem na minha lombar - não sei se eram do meu marido ou da enfermeira porque nessa altura do campeonato eu mal ficava de olhos abertos, tentando ao máximo respirar e me concentrar no meu corpo. Lembro da voz da enfermeira, das mãos do meu marido, apertadas pelas minhas. Lembro dele encostar o rosto no meu, falando perto do meu ouvido palavras de amor e incentivo. 

Lembro que me foi dada a escolha: poderia ir pra banheira pra aliviar a dor, mas talvez a água retardasse o trabalho de parto. Ou podia continuar na banqueta e ir para o expulsivo. Escolhi a banheira. Eu vi ela chegar, ser instalada, inaugurada, testada, vi enfermeiras recebendo treinamento sobre parto na água, escrevi sobre ela e tirei muitas fotos pra não querer estar lá. Sempre quis. Sempre sonhei. Até achei que meu bebê poderia nascer lá. A água, que sempre foi minha amiga, me abraçava e acalmava. Me agarrava no meu marido e o apertava, consciente de que ele devia estar desconfortável com os apertos mas cansada demais pra falar qualquer coisa. Aquela banheira resgatou um pouco da minha energia e calma. Eu estava com medo do expulsivo e uma parte minha quis adiar aquele momento. 

Na água, minha bolsa rompeu naturalmente. Era a hora de fazer força e eu tinha medo. Mas também queria que ele nascesse. Queria poder descansar. Estava sem dormir e não sabia que horas eram. Queria parar um pouco mas sabia que não dava. Voltamos pra banqueta pra por o bebê no mundo e eu demorei pra entender onde colocar a força. Tinha os olhos fechados o tempo todo, ouvia a enfermeira e meu marido, ouvia outras pessoas no quarto - médicos e outros profissionais aguardando o bebê nascer.

Precisei de algumas longas forças pra conseguir trazer meu filho. Eu consigo lembrar claramente - uma lembrança sensorial - da sensação dele passando e acabando com toda a dor, do corpo escorregando depois da cabeça, mas a lembrança da dor anterior é maior - talvez por isso muito se fale sobre a dor do parto e muito pouco sobre o alívio que ele traz. Pari Davi sentada na banqueta, abraçada pelo meu marido.

Assim que veio ao mundo, ele foi dado pra mim. 

Davi nasceu as 6h38, na Santa Casa de Cabreúva (SUS) num parto normal humanizado sem intervenções. Nasceu com 2,920 kg e 48 cm, amparado pela enfermeira obstetra plantonista.

Quando ela me entregou o bebê, vi que ele estava molenga e não chorava. A enfermeira me disse com toda a calma "respira, que ele está com o cordão umbilical ainda e tá tudo bem. Respira". Eu percebi meu marido tenso com a cena, mas não consegui falar nada. Estava ofegante, coração acelerado. Sentia meus olhos apenas semi abertos, mas agora via tudo, entendia tudo. Havia saído da partolândia e estava apenas me acostumando com a claridade. 

Como já tinha visto alguns partos fiquei tranquila com o corre corre que se seguiu, apesar de alerta. Aquela equipe sempre teve toda a minha confiança. O cordão foi cortado rapidamente e o bebê levado ao pediatra, ali, do meu lado. Eu segui no chão, na banqueta, abraçada pelo marido e assistida pela enfermeira, que cuidadosamente, como quem tece algo numa lã muito delicada, me ajudava a parir a placenta. O procedimento foi sutil e totalmente indolor (na verdade não sei se normalmente isso dói ou não, mas vi uma certa poesia no movimento de enrolar o cordão em câmera lenta e ir puxando a placenta centímetro por centímetro. Ela tinha um rosto calmo, concentrado, mas em paz. E quando olhei pra ela e pra placenta e entendi que tinha realmente - finalmente - parido meu filho, fiquei em paz também). 

Enquanto isso, a equipe cuidou do bebê, que nasceu cansadinho pela demora do expulsivo. Ele chorou, o pediatra nos acalmou, tudo estava bem. 

Eu fui sendo avaliada e cuidada, o bebê também, mas todo esse acaso não permitiu que ele ficasse comigo nesses primeiros momentos, nem que mamasse na primeira hora. Meu marido também não pode cortar o cordão umbilical, mas tudo ficou bem e era isso que importava.

Tive uma laceração de 1 grau e precisei levar um ponto. Da banqueta, me levantei para ir até a maca e assustei com o sangue escorrendo por entre as pernas. Um sangramento normal e esperado no pós parto imediato, mas eu assustei mesmo assim. Enquanto cuidavam de mim, meu marido babava no nosso bebê. Vi seus olhos brilhando, sorrindo pra mim e pro bebê. Esse momento foi mágico e eu fiquei em paz.


Nos minutos seguintes, carreguei um pouco o bebê, ainda deitada. Logo em seguida, fui sozinha tomar um banho - sozinha porque não havia necessidade de acompanhamento e não por desleixo do hospital. Estava bem, alerta, sem dores. Tomei meu banho enquanto preparavam o quarto pra gente e meu marido ninava nosso filho. Fomos os três para o alojamento, onde ficamos juntos até a alta hospitalar, 36 horas depois. 

Na minha mente, apenas um pensamento: "caraca, eu consegui. Eu achei que não conseguiria, mas eu consegui."

Eu pari. Ele nasceu. 
"Deu certo."

Quem ler esse relato cheio de medo e dor, pode pensar que a experiência foi, de alguma maneira, negativa. O medo não é nosso inimigo, nem tampouco a dor. Eu sei, parece coisa de budista, parece conversa fiada. 

Digo sem sombra de dúvida que algumas coisas me salvaram de cair no penhasco onde o medo passa a ser descrença, pânico, desistência:

- A confiança nos protocolos da humanização implantados firmemente no hospital que me atendia; 

- A confiança de que, apesar do medo e da dor, meu corpo foi divinamente projetado para esse momento que é, por mais que a gente tente negar, fisiológico, natural;

- A tranquilidade de ter comigo em todos os segundos uma pessoa da minha confiança, pronta pra me amparar, me cuidar, me proteger e me dizer o que eu precisava ouvir. Alguém que passou meses (muitos antes até de eu engravidar) me ouvindo falar sobre humanização, fisiologia do parto, posições pra parir, intervenções desnecessárias, métodos de alívio da dor e jeitos de me ajudar nesse momento. Alguém que se dispôs a ver documentários e muitos vídeos de gente parindo por aí. 

Esses três, juntos, foram os responsáveis por me permitir fechar os olhos, olhar pra dentro, me conectar com o que estava acontecendo com o meu corpo, minha mente e meu coração naquelas horas e viver, de fato, o parto. 

O parto normal, o parto humanizado, o parto rápido, o parto sem intervenções, o parto com final feliz. O parto em que eu não era a fotógrafa, a repórter, mas a mulher. A leoa. A mãe. O parto tão desejado, tão almejado. Pro qual eu estudei e me preparei e no qual me vi muito antes desse momento chegar. 

Todo esse "preparo psicológico" me conduziu pra esse momento. Pra essa alegria dolorida e intensa. Pra essa conquista. Essa coisa que eu fiz, porque fui mulher, porque fui forte, porque fui força e fortaleza. Porque fui natureza e permiti que natureza fosse, em mim. 

E assim, me fiz mãe. E esse olhar fez tudo valer a pena.