sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Repulsa ao sexo e Dois Pesos, por Maria Rita Kehl

segue, talvez, o texto mais corajoso que eu já li:


Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células–tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século XVII.

A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.

A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause…), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores contaminados.

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.
 

Quando decidimos discordar de algo ou de alguma situação, devemos ter em mente que riscos existem e que enfrentaremos inimigos muitíssimo mais fortes do que nós. A oposição é normalmente caracterizada pela minoria, até que ela ganhe força, torne-se maioria e derrube a situação para tomar seu lugar (isso, igualzinho acontece com as prefeituras das cidadezinhas do interior).
 
Maria Rita Kehl (psicanalista, conferencista, ensaísta e poeta) enfrentou sérios inimigos com seus textos, em especial o apresentado aqui, no qual contraria e ataca a Igreja Católia e sua figura principal, o Papa, os conservadores e os homens no geral.
 
É um texto mais do que corajoso: é arriscado - e talvez um dos responsáveis por sua demição do jornal O Estado de São Paulo, além de 'Dois Pesos' no qual elogia o Bolsa Família - e louco como pular de um precipício. Por quê? Porque hoje o jornalismo foi condenado à submissão, como foram as mulheres umas décadas atrás. É condenado a calar-se ou gritar de acordo com as vontades dos que pagam o salário dos jornalistas ou, pior, dos que anunciam no veículo no qual você trabalha e, consequentemente, o impede de falir.
 
Porque o jornalismo independente, pensador, crítico, opinativo, de carne e osso morreu.
 
Maria Rita não ataca simplesmente uma religião dominante e, sim, dogmática e preconceituosa, mas toda uma sociedade que, há séculos, corrompeu-se de diversas formas e que, até hoje, nao conseguiu curar-se de todas suas chagas - o machismo e o pensamento patriarcal entre elas. Mulheres ainda não tem os mesmos direitos que os homens, mas talvez o que mais as oprima seja o moralismo. Moral que, afinal, nada mais é que um milhão de conceitos pré fabricados por pessoas que se dizem mais sábias.
 
Mulheres castigadas por esse tal moralismo que, muitas vezes, deixam seus sonhos de lado - como estudo, trabalho, viagens - por verem suas famílias, amigas e - principalmente - maridos escandalizados com sua falta de atenção à casa, ao seu homem e às suas crias. Mulheres que quando alegam não terem intenções de procriarem são apedrejadas com críticas mil sobre o quão frios e desumanos são seus corações. 'É a natureza', dizem. 'Nnenhuma mulher é completa sem ser mãe'. Mentira.
 
Essas tais verdades incontestáveis acarretam numa das mais intermináveis discussões baseadas no moral e na ética dos últimos tempos: o aborto.
 
Como bem disse Maria Rita, ninguém - ninguém, gente, ninguém! - é a favor do aborto. Mas acontece que o aborto é feito, ele existe e, como diz a Dilma (sim, eu concordo com ela) entre prender e atender, é preferível que se atenda as mulheres e que seja feito de uma maneira que não fira a vida daquela mulher. Fato 1: o aborto, muito mais do que uma questão ética, é uma questão de saúde pública. Fato 2: acontece, mesmo sendo crime. Fato 3: nenhuma decisão constitucional deveria ser baseada na religiosidade, visto que vivemos um país legalmente laico.

E eu sou completamente a favor dos tratamentos e pesquisas com células-tronco.
 
(Leiam "Dois Pesos", por favor, é interessante e importante pro resto desse post.)
 
Em "Dois Pesos", Maria Rita, foi - se é que é possível - ainda mais desvairada. Irritou os que depositam seu rico dinheirinho. E eu sou completamente contra sua demissão. Por quê? Porque, meus queridos, a partir do momentinho em que seu José Serra, apoiado abertamente pelo Estadão, falou em suas propagandas políticas e debates que vai aumentar o Bolsa Família e que é a favor dele, não há nada de errado em se elogiar o programa. E nem acho que ela o elogiou. Só esclareceu o óbvio: "Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200?". Não, ningém sabe.
 
Fato 4: visto que ela é uma articulista - autora de artigos - e a opinião expressada neles não é necessariamente a opinião do jornal, a demissão - sob essas condições - é inválida. Fato 5: acho que o jornal foi totalmente desmoralizado. Deu a entender que distorce fatos em favor do candidato tucano, visto que declararam seu apoio à ele e, logo em seguida, demitiram uma funcionária por supostamente flertar com a situação.
 
"Fui demitida pelo jornal O Estado de S. Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião (...) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?"
(Maria Rita Kehl, em entrevista ao Terra Magazine)
 
  
Certas coisas me revoltam.
 
Por um sonho jornalismo corajoso e independente, Jaqueline.

Um comentário:

Renato Violardi disse...

Querida Jaqueline, por pior que possa parecer, a verdade e a isenção tem um preço muito alto. Soa estranho ao mundo da informação e, aos profissionais da informação, que a censura possa existir num país democrático. Mesmo de forma velada, escondida do grande público, a censura existe e permanece forte como nunca. Cito como exemplo o próprio "Estadão", sob censura a quase um ano e meio. O meu caso também é emblemático. Não posso sequer citar os nomes daqueles que me processaram. Essa é a "imparcialidade" do judiciário brasileiro. Se um poder constituído faz isso, imagine o particular, com seus funcionários e "colaboradores". Mesmo com tudo isso, acredite: ainda vale a pena sonhar! Espero isso de você!