terça-feira, 12 de março de 2019

que horas são?

Houve o tempo de me preocupar com números. O salário baixo, o empréstimo debitando na conta, o aperto, a impossibilidade de pagar 50 mil de entrada. Tempo de esperar, acalmar, procurar outras possibilidades. Tempo de dar tudo errado pra poder dar certo. E então veio o momento de círculos perfeitos: a entrada pequena, o subsídio generoso, o FGTS necessário, um bom chá pra curar aquela azia... 

Houve tempo de me preocupar com papéis. Eram xerox e documentos e cláusulas e rubricas. Milhares delas. Fila, paciência. Não pode mexer no celular dentro do banco, senhora. Assina com a construtora. Assina com a imobiliária. Assina com a Caixa. Uma assinatura atrelada a outra. Se um não autoriza o outro não vende e ponto final. Paga taxa, paga corretagem, para sinal, paga seguro. Questiona venda casada. Liga mil vezes e não é atendida. Espera na fila. Perde tempo, perde dia de serviço pra conseguir um ressarcimento proporcional. Dinheiro que você nem tinha mas deu um jeito de pagar. 

Houve tempo de me preocupar com pisos e móveis e cores e estampas. Não era hora, mas eu precisava preencher meu cérebro com algo melhor que "esperar". Foi tempo de pesquisa, fita métrica e pantone. E dinheiro muito bem gasto. Eram tecidos e cerâmicas e tapetes felpudos.

Houve tempo de pensar em solidão, gatos e vinhos.

Houve tempo de comprar panelas. Acompanhar a flutuação do preço dos fogões de embutir. E adquirir facas e tábuas e copos e taças e potes de plástico e liquidificadores e aspiradores de pó e tal. Sendo as aquisições mais importantes o saca-rolhas de dez reais e a cama box queen size maravilhosa na promoção.

Houve tempo de querer pias e bancadas e chuveiros... e meus mil armários milimetricamente planejados. Tempo de me irritar com medidas e impossibilidades. Tempo me preocupar com futuros distantes e na reforma do quarto depois dos filhos e no apartamento pequeno demais pra família em crescimento. Tempo de virar a noite rabiscando móveis e paredes. Tempo de trena, lápis e caderno de desenho. Teve tempo de ir em loja e comprar madeira e metal. Tempo de ver a primeira delas ser cortada sob medida.

Houve um tempo de promessas. De datas, prazos e empolgação seguida de frustração. Setembro, novembro, dezembro, janeiro... A energia da empolgação foi acabando. Mas com diz a música "tristeza não tem fim" e a frustração só aumentando.

Março chegou e com ele vieram as chaves. Um monte delas. Barulhentas, umas contra as outras, em um chaveiro porcaria. Reais. Palpáveis. Olho pra elas e nada acontece além da boca se contorcer numa careta desdenhosa. Lembro de Clarice Falcão cantando "um relógio parado não existe, todo telefone quer tocar" e penso pra que raios servem chaves sem as portas que elas devem abrir.

Coloquei o vinho da comemoração na geladeira. vou esticar o tapete no chão e beber o vinho português na minha taça nova, ouvindo fado e me lamentando da demora, até sentir vontade de comemorar.

E foda-se. Cansei.