Esse texto foi escrito, originalmente, para o livro, em processo de edição e criação, Incorrespondências, que há de sair um dia. É uma meia-ficção, uma tentativa de inventar algo. Espero que gostem. Eu, particularmente, o tenho como a um filho mais bonito que os outros, do qual eu gosto mais. Esse bebê me arrepia toda a vez que leio. Espero que represente algo pros que aqui vierem se entreter.
De overdose - Jaqueline Defendi Rosa
Querido, sei que há anos não lhe escrevo e que há muito estou com outro alguém, noutra cidade, noutra história, noutro rumo. Mas acontece que há várias noites venho sonhando com você com tal grau de realidade que pensei que nunca, meu Deus, nunca mais conseguiria dormir se não lhe enviasse uma carta. Não teria sossego, entende.
Sei que combinamos não guardar mágoas e nem revirar as areias nas quais enterramos nossa vida juntos – imagino que você, sempre tão honesto, tenha cumprido sua parte do trato. Mas volto através desta pra tentar livrar minha consciência desses sonhos melancólicos e saudosistas que me perseguem noite após noite, pois com eles não consigo sobreviver incólume.
Acredite, andei me sentindo culpada pelas broncas que te dava pelas roupas espalhadas e copos na mesinha de centro na sala – elas manchavam a madeira, querido, e todas as vezes em que a casa estava de pernas pro ar as visitas chegavam, você se lembra? E aquela vez em que você deixou o cachorro entrar, pra protegê-lo da chuva, e ele deitou do meu lado da cama, ahh como eu te odiei naquele dia... Mas você não me ouviu quando disse pra deixa-lo lá fora.
Depois de um tempo, comecei a esquecer a raiva que eu sentia quando você ignorava meus penteados e roupas novas, sempre tão atento ao futebol, e passei mesmo a sentir falta do silêncio que você providenciava quando eu queria ler, das suas piadas sujas e de você contando como fora o seu dia no trabalho. Comecei a ansiar todos os dias pela hora da sua chegada, que não chegava nunca. Queria poder te ouvir roncar ou cantar no chuveiro. Pra ter ideia, comecei a assistir aqueles filmes de guerra e a encher minha comida de pimenta, assim, imperceptivelmente. Dá pra imaginar? Só notei quanto já tinha adotado completamente hábitos que eu sabia que eram originalmente seus. Quando já era tarde demais para o tratamento – meu terapeuta disse que é meu subconsciente dizendo pra onde quer voltar, e não sei bem se consigo ignorar esse diagnóstico.
Fazer o quê, né. O que não tem remédio, remediado está. Minha vó sempre dizia. O que sei é não devia nem mesmo lembrar da sua existência – minhas amigas vivem me lembrando que eu devia te esquecer – e só servem mesmo pra fazer com que eu me lembre ainda mais. E todas as lojas agora decidiram vender coisas com o seu perfume e parece que são sempre suas cores favoritas que estão na moda. No rádio, só tocam as suas preferidas, aquelas que eu detestava, e pra onde quer que eu corra dou de cara com você. Que nem deve estar sentindo a minha falta.
Mas se estiver, um tiquinho que seja, me liga, me alcança, me espera. Me junta, me agarra e não larga de jeito nenhum. Se houver em você um grama de saudade. Uma colherinha de arrependimento, de vontade. Se seu café não estiver forte o bastante, suas roupas não estiverem engomadas, se seu coração estiver precisando de uma boa faxina e seus sentimentos de organização: me chama, me clama, inflama, incendeia. Aceito qualquer desculpa, qualquer motivo, qualquer intenção, qualquer migalha, qualquer faísca.
Pouco importa o que dirão os vizinhos, os parentes, as ruas, os passarinhos. Não me importo mais em ir pro céu, que o próprio nada vale sem que nessa vida se viva com fervor. Me incomoda a ausência de você, que nenhum outro consegue suprir. Me adoece essa distância, essa culpa, esse amor.
Se for pra morrer de amor, quero morrer por ele afogada e não só úmida. Quero que me incinere de uma vez e não só avermelhe as pontas dos dedos com suas chamas. Nada de homeopatia. Nada de gotinhas, daquelas doses pequenas.
Já que eu vou mesmo morrer de amor, me deixa morrer de overdose?